Peço apenas um breve momento da atenção do leitor para que imagine um mundo sem Páscoa. Primeiro seria preciso deixar de escutar nas Igrejas e capelas espalhadas pelo mundo cristão os textos mais belos do cristianismo e que são lidos durante todo o ano, mas de forma especial na Quaresma. Como seria o mundo se nunca se tivesse escutado que um pai aguardou o retorno do seu filho mais novo e se encheu de compaixão quando este voltou? Seria um mundo que jamais conheceria um abraço eterno cheio de misericórdia. E o que seria do mundo onde não se escutasse a história de uma mulher salva por um homem que perguntou aos que a acusavam, quem estaria sem pecados? Esta expressão ficou tão famosa que passou a fazer parte das conversas de rua e com a possibilidade de ser invocada por alguém que faz um apelo à humildade contra a prepotência e a arrogância das condenações irrefletidas ou instintivas.
Agora de forma mais objetiva proponho que coloquem diante de vós a possibilidade de não termos uma manhã onde as pessoas saem à rua a gritam aleluia. Miguel Torga lamenta-se num dos seus poemas por não conseguir fazer o mesmo que fazem os seus conterrâneos: ir com alegria para a missa de domingo. Para ele, esta impossibilidade, por não ser crente, era causadora de uma dor atroz. Torga pensava a fundo as grandes questões da vida e não tinha como resposta a diversão da massificação consumista nem o ruído das redes sociais. Por isso, não é de estranhar que hoje facilmente se seja indiferente e nem sequer se pense na falta que faz poder gritar nas praças humanas o grito da alvorada de Páscoa: “Não está aqui, ressuscitou” (Mt 28,1-89). É verdade, para uma boa parte da população dita cristã, quase se tornou irrelevante a vivência da Páscoa.
Num primeiro momento gostaria que olhassem com mais profundidade para o tema Páscoa e descobríssemos juntos onde tudo começou. A Páscoa é na sua origem uma festa de transumância, relacionada com a passagem dos rebanhos dos pastores nómadas das pastagens de Inverno para os pastos de Verão. Da escassez para abundância, com os perigos inerentes a um caminho longo (terrenos inóspitos, feras…). Mais tarde, com a saída do Egípto do povo Hebreu, com Moisés à cabeça, a Páscoa ficou marcada pela liberação da escravatura, da vida indigna, por isso também escassa, para a vida em abundância e livre na terra prometida. Com Jesus, a Páscoa ganha um aprofundamento ulterior: a passagem da morte para a vida. Primeiro, à festividade da Páscoa está sempre associada a passagem. É uma passagem. Em segundo, a Páscoa implica a vida, para uma condição melhor e, no caso cristão, para a plenitude da vida – a ressurreição. Esta não é uma reencarnação, um voltar a esta vida, mas um entrar na vida em Deus.
A nossa vida esta repleta de passagens. Esta é uma das experiências basilares da condição humana, ser peregrino. Estamos a caminho. Somos seres inacabados e sempre à procura de algo mais pleno e verdadeiro. Podemos até não ansiar por uma outra vida, mas, muitas vezes, desejamos que a vida mude, por causa de todas as situações dramáticas pelas quais passamos. Podemos tentar uma certa sedentarização, como é o caso da sociedade de hoje que, viajando muito, se faz mais do que nunca sedentária, pois tudo faz para se defender de todas as imponderações da vida. Não arriscamos assim tanto quanto pensamos, porque já não somos capazes de arriscar algo para a vida e que implica uma liberdade maior do que nós. Esta é a linguagem Pascal. Uma liberdade que nos possibilita a vida em plenitude. Uma plenitude feita de simplicidade e não do simples acumular de experiências que apenas respondem ao instinto possessivo da natureza.
Celebrar a Páscoa é sair para a rua e gritar Aleluia, a presença de Deus, que faz com que entremos no absurdo do sepulcro vazio se encontrar cheio da presença de Deus ou na loucura de gritar a presença viva Daquele que amou até ao fim. A vida Daquele que tanto amou que não Se quis salvar a Si. Sim, porque amar verdadeiramente passa por não Se querer salvar a Si próprio. A vida de Jesus encontra-se repleta de gestos pascais. Toda a vida de Jesus aponta para a Páscoa, por isso é Pascal. É uma passagem para o Pai.
“Todos os nossos sacrifícios, se vividos no amor, já não são mortais, mas pascais, passagen de um amor maior, um amor que vence a morte, a morte deste agora e, em Cristo , a morte de tudo.”
Padre Artur Pinto, pároco de Espinho
Sem a possibilidade de gritar a ressurreição toda a vida se faz muda. Sem sentido. A pessoa humana só pode encontrar um sentido para si, fora de si. Nesse amor desinteressado em si e que só se interessa no bem do outro. Como se vive sem o outro? Todo o caminho humano, em direção ao outro, é uma verdadeira Páscoa, uma passagem além de nós, fora de nós e que em nós se faz nessa liberdade e nesse amor maior do que nós. Só pode ser puro dom em nós. É um dom poder gritar –“Aleluia, Ressuscitou”, mas é um dom ainda maior nada poder diante do outro a não ser amá-lo. O amor é assim, faz-nos frágeis diante do outro. Esta pura fragilidade diante da nossa miséria é Deus, que sai, porque ouve o clamor e vê a miséria do Seu povo e inclina-Se para o libertar.
A celebração da Páscoa é a celebração do amor maior, tão grande que se faz todo fragilidade diante da miséria humana e Se implica em salvar-nos. A Páscoa é a celebração de um Deus que não se encontra fora do sofrimento do mundo, como um mero espectador. Deus implica-Se connosco para nos libertar. Assim a história dos sofrimentos humanos transforma-se na história do amor ao mundo. O Deus crucificado é a única verdadeira novidade da existência humana. A novidade é a do amor: Deus amou tanto o mundo que entregou o Seu próprio Filho ao mundo, para que o mundo fosse salvo. Deus não desejou a cruz. Nesse Deus é impossível acreditar. A Páscoa celebra o Deus que se faz frágil para partilhar connosco a nosso sofrimento e que, no Seu imenso amor, vence todo o mal, porque não Se salva da morte e por isso nos pode salvar. Não se descula, nem se escusa, mas toca a finitude gritante da humanidade e toma-a para Si, para que a humanidade recebesse, de Si, a vida.
O único convite que posso deixar é que neste dia se saia para a rua e se grite “Aleluia”, se grite a ressurreição. O amor venceu em Jesus Cristo a morte. Não há maior ironia, o mais frágil, morto como “bode expiatório”, é entronizado como Senhor do universo. A morte do frágil não faz vencedores, mas culpados pelo mal, mas esse mal revela um amor tão grande que nos possibilita dizer: “Oh feliz culpa que mereceu tão grande redentor”. A vida tem outra possibilidade, não estamos prisioneiros do mal, antes pelo contrário, podemos viver noutra condição, agora, ainda que não em plenitude, mas que será plena em Deus. Haverá maior grito do que este em toda a história da humanidade? Haverá maior revolução do que esta? O amor venceu em todo aquele que seja vencido pelo amor. Todos os nossos sacrifícios, se vividos no amor, já não são mortais, mas pascais, passagem para um amor maior, um amor que vence a morte, a morte deste agora e, em Cristo, a morte de tudo. A vida não está prisioneira do determinismo biológico. Há outra possibilidade e que não é por acaso nem ocasional, mas gratuita, brota da graça, do amor incondicional de Deus.
Celebrar a Páscoa é para nós a mãe de todas as festas e grita bem alto a vida como um imenso dom e não um castigo a suportar. Um dom imerecido e que só se vive plenamente se fizermos dela um dom, uma passagem, uma páscoa. Uma vida pascal é fazer de cada dia uma oportunidade para viver a vitória do amor sobre a morte, sobre a finitude do pouco que somos e de cada momento. Não deixámos de ser pouco e cada momento continua a ser um instante. O pouco que somos e o pouco de cada instante vividos como um dom, permite que se abra no mundo uma outra possibilidade, uma história aberta ao definitivo e pleno (uma história escatológica), a comunhão com Deus.
Venham celebrar a Páscoa, esta Páscoa, para celebrarmos amanhã a Páscoa definitiva. Celebremos agora a vitória definitiva do amor sobre o caos e a entropia, neste pouco de cada dia, com gestos de amor e de perdão. Cantemos “o dia que o Senhor fez” e façamos entoar nas ruas “Aleluia”. O Senhor vai à nossa frente e encontrar-nos-á na Galileia. Depois da manhã de Páscoa toda a terra é Galileia.
Uma Santa Páscoa para todos!
Padre Artur Pinto, pároco de Espinho