O guichet do civismo

Era Primavera, mas todo o cenário cheirava a Verão: dali, da esplanada do bar em cima da areia a que já chamei casa, não se vislumbrava uma só nuvem; o sol, forte, suplicava por corpos destapados; o mar, aquele nosso mar, chamava para o primeiro mergulho do ano; nem nortada havia, imaginem só.

Era Primavera e só por ser Primavera me saiu um ousado “e se ficássemos aqui na Baía?” – qualquer espinhense que se preze sabe que a Baía não é “nossa” quando mais a desejamos. Ao longo da vida, várias vezes me interroguei quando teremos feito essa penosa concessão. Quando teríamos abdicado da melhor praia do concelho a favor dos forasteiros. Cheguei a pensar que poderia tratar-se de uma daquelas cláusulas dos tratados de independência ou descolonização: “A partir de agora, estas terras são vossas, mas, de Junho a Setembro, aquele pedaço de costa entre o esporão e a Rua 23 está-vos vedado. A ele acederão, com prioridade absoluta, os que vos visitarem oriundos de lugares (mais ou menos) longínquos e que chegarão de camioneta, vouguinha, comboio ou, por vezes até, de carro.”

Seja ou não este o motivo (não encontro outro, por muito que pense), o certo é que nos fomos habituando a descer a cidade e, em frente às escadas da Baía, desviarmos como bolas de flippers para norte ou para sul, consoante as fases da vida, as paixões desse Verão e as praias da moda a cada ano. E crescemos na Costa Verde, na Azul, na Seca, nos Pescas, nas Sereias, na Pop, no Marbelo, na 37, onde nos sobrava sempre espaço para estender a toalha e os sotaques em redor eram, geralmente, menos carregados. Quando queríamos fugir de olhares indiscretos e dos mui férteis diz-que-diz-que de terra pequena, tínhamos ainda Silvalde e Paramos, onde o mar picado e as dunas carregadas de chorões pareciam ter o condão de afastar não só o turista de marmita e garrafão de tinto, mas também essas vozes alcoviteiras que passam e repassam estórias alheias a velocidades estonteantes.